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Dificuldades sociais nas expressões de luto e pesar na contemporaneidade

  • Foto do escritor: temporacomunicacao
    temporacomunicacao
  • 24 de set.
  • 3 min de leitura

Coluna da psicóloga Franciele Sassi


O luto é uma experiência humana universal e inevitável, que mobiliza dimensões emocionais, cognitivas, físicas, sociais e espirituais diante da perda de alguém significativo. Trata-se de um processo que exige tempo e espaço para que o sujeito possa reorganizar sua vida e atribuir novos significados à ausência. Historicamente, as sociedades reconheciam esse período como legítimo, instituindo rituais e práticas coletivas que não apenas simbolizavam a despedida, mas também ofereciam ao enlutado um “tempo socialmente autorizado” para viver sua dor.


Na contemporaneidade, entretanto, esse cenário tem se transformado. Vivemos em uma sociedade marcada pela aceleração e pela lógica da produtividade, em que o valor individual é constantemente medido pela capacidade de desempenhar, de se manter ativo e eficiente. Nesse contexto, o luto, por ser um estado que naturalmente implica fragilidade, retraimento e necessidade de pausa, entra em choque com as exigências do mundo atual. O enlutado frequentemente se vê pressionado a retomar rapidamente sua rotina de trabalho, estudos e compromissos, ainda que internamente não esteja em condições de fazê-lo.


Essa pressão social pode ser compreendida à luz do conceito de “luto não reconhecido”. Ele descreve situações em que a dor do enlutado não encontra validação social ou é deslegitimada, seja por preconceitos sobre o tipo de perda, seja pela ausência de rituais de reconhecimento, seja pela expectativa de que “já deveria ter superado”. Na sociedade atual, o luto tende a ser desautorizado justamente pela incompatibilidade entre o tempo subjetivo do sofrimento e o tempo acelerado da produção.


Além disso, o discurso contemporâneo sobre resiliência e superação imediata reforça a ideia de que é preciso “ser forte”, “seguir em frente” e “não se deixar abater”. Embora a resiliência seja uma capacidade adaptativa importante, quando exigida de forma precoce ou impositiva, pode funcionar como mecanismo de silenciamento. O enlutado passa a sentir que não tem o direito de demonstrar sua dor, internalizando a ideia de que expressar tristeza ou vulnerabilidade é sinal de fraqueza ou ineficiência.


Do ponto de vista psicológico, essa aceleração e repressão do pesar traz riscos significativos. Modelos contemporâneos de compreensão do luto indicam que a adaptação saudável à perda envolve um movimento oscilatório: em alguns momentos, a pessoa precisa se voltar para a dor, permitindo-se chorar, lembrar e elaborar; em outros, precisa focar nas tarefas de restauração da vida, retomando atividades e projetos. Esse processo é dinâmico e não segue um padrão rígido. No entanto, quando o enlutado não encontra espaço para viver a dimensão dolorosa, sendo forçado a permanecer constantemente na esfera da “restauração”, a elaboração do luto pode ficar comprometida, levando a manifestações de sofrimento tardias, como depressão, ansiedade ou sintomas somáticos.


A “sociedade da performance” agrava esse cenário ao associar valor humano à produtividade e ao sucesso individual. Nesse modelo cultural, a vulnerabilidade é rejeitada ou minimizada, o que contribui para que os enlutados sintam sua dor como algo inadequado ou socialmente incômodo. Isso pode resultar em isolamento, pois muitos preferem silenciar seu sofrimento a correr o risco de julgamentos ou da cobrança para que retomem rapidamente a “normalidade”.


Portanto, a dificuldade atual de expressar o luto não deve ser compreendida apenas como uma limitação individual do enlutado, mas como reflexo de condições socioculturais mais amplas. A aceleração do tempo social, a pressão pela resiliência imediata e a negação da vulnerabilidade tornam o luto uma experiência cada vez mais solitária e silenciosa. Reconhecer esse contexto é essencial para que profissionais de saúde mental, instituições e comunidades resgatem a legitimidade da dor e construam espaços coletivos de acolhimento. Mais do que uma questão privada, o luto é também um fenômeno social, que precisa ser vivido em ritmos humanos, e não apenas compatíveis com os imperativos da produtividade contemporânea.


Franciele Sassi, Mestre em Psicologia Clínica, Especialista em Lutos, Perdas e Suicídio, Especialista em Apego e Vínculos, Intervenções em Emergências Pós-Desastre, colunista do Pauta Serrana.
Franciele Sassi, Mestre em Psicologia Clínica, Especialista em Lutos, Perdas e Suicídio, Especialista em Apego e Vínculos, Intervenções em Emergências Pós-Desastre, colunista do Pauta Serrana.

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