Entre o match e o vazio: o invisível paradoxo dos aplicativos de relacionamento
- temporacomunicacao
- há 2 dias
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Coluna da psicóloga Franciele Sassi
Nos últimos anos, os aplicativos de relacionamento transformaram a forma como as pessoas buscam formar vínculos afetivos. Essas plataformas prometem ampliar as possibilidades de parceiros, o que parece vantajoso, mas ao mesmo tempo carregam efeitos adversos pouco visíveis. Três pontos merecem destaque: a facilidade de escolha, a idealização do encontro e a sustentação (ou não) da vida real com suas fragilidades.
A primeira promessa é clara: ter acesso a muitos perfis, muitos “matches”, muitas possibilidades. No entanto, esse excesso de opções pode gerar justamente o oposto da liberdade, ou seja, uma sobrecarga na escolha.
Um estudo da Tilburg University, em 2020, verificou que, em ambientes de namoro online, a abundância de opções gerava um “mind-set de rejeição”: à medida que o usuário passa por mais potenciais parceiros, a aceitação cai em média 27 %.
Outro estudo mostra que a altíssima disponibilidade de parceiros (muitos perfis exibidos) está associada a maior medo de ficar sozinho, diminuição da autoestima e sensação de sobrecarga de escolha. Em termos práticos, a facilidade de deslizar, escolher, descartar, pode levar a um ciclo de alta exigência, pouco engajamento e insatisfação – nada agrada, uma vez que cria a sensação de que a “melhor possibilidade” parece sempre estar próxima, no próximo passar de dedos.
Nas plataformas, grande parte do contato ocorre a partir de fotos, breves descrições, “matches” rápidos. Nesse contexto, a pessoa encontrada está diante do risco de ser uma construção de expectativas. O que se pode ver são muitos perfis construídos de forma idealizada, com fotos que exageram traços desejados ou que escondem imperfeições – não é à toa que tem tanto meme nas redes social sobre expectativas versus realidade rsrs...
Além disso, o ambiente de aparências reforça que o “bom” pareça imediato — o “bom perfil”, a boa foto, o bom match. Isso favorece a idealização: o que vemos, ou melhor, o que imaginamos, torna-se mais fácil de sustentar do que o encontro real com todas as suas falhas, hesitações, ambiguidades.
Uma pessoa real, com uma história prévia, com fragilidades, com perdas, com dia-a-dia, exige algo diferente da “imagem” ou do “match”. Quando a busca está orientada por estímulos visuais, opções rápidas, perfis “bons demais para acreditar”, há risco de que se crie internamente uma distorção de “o que deveria ser” versus “o que é”.
Usuários de apps de relacionamento, em estudo realizado pela Radboud University, em 2021, relataram menor satisfação com seu status de relacionamento (ou falta dele) em comparação a pessoas que não usavam apps.
Essa insatisfação pode advir não só da falta de parceiro como da discrepância entre expectativas elevadas e encontros pouco sólidos. A idealização, ou seja, aquele perfil que promete isso, aquilo, uma conexão perfeita, faz com que quando o encontro real aconteça, com tensões, com tarefas do dia-a-dia, com lágrimas, com luto, com rotina, com divergências, não pareça bom o bastante.
E a própria pessoa pode se sentir frustrada, porque acreditava que a sua “boa escolha” excluiria problemas ou tornaria tudo mais fácil. Essa idealização impede a aceitação de que relacionar-se com um outro humano inclui momentos de vulnerabilidade, de conflito, de cuidado, de continuidade, e não só de estímulos rápidos sentidos no “match”.
Do ponto de vista psicológico, algumas desdobramentos relevantes podem ser observados. A sensação de opções infinitas pode gerar fadiga no namoro digital. É comum escutar de usuários de apps sintomas de exaustão emocional, despersonalização e diminuição da autoeficácia. A idealização e a comparação constante com perfis “melhores” reforçam insatisfação, medo de aceitar menos, ou “pular” para outra opção antes de conhecer a profundidade de alguém.
Quando alguém está em luto ou lidando com perdas, pode haver carga emocional adicional: a expectativa de encontro “ideal” contrasta com o que se sente internamente, criando desalinhamento entre o mundo externo (apps, perfis…) e o interno (vulnerabilidade, dor, desejo de vínculo com significado).
É possível observar que o uso de apps cria uma camada de evitação da imperfeição ou do processo. Há uma busca por aquele perfil que parece saudável, perfeito, “resolvido”. Mas as pessoas que trazem perdas, o que naturalmente ocorre quando se está vivo, sabem bem que a vida não se estrutura em vídeos curtos ou perfis imaculados, mas sim em cuidado, continuidade, presença, construção.
Essa dinâmica evidencia um paradoxo contemporâneo: quanto mais recursos tecnológicos são criados para aproximar, mais frágeis se tornam os vínculos quando não se tolera o real. Sustentar um relacionamento saudável requer presença, paciência, disposição para o diálogo e para lidar com o que escapa ao controle — dimensões que o ambiente virtual tende a suavizar ou ocultar.
Compreender esses fenômenos é fundamental para ajudar as pessoas a reconstruírem uma relação mais consciente com o amor e com o próprio desejo. Envolver-se com o outro implica aceitar que o encontro humano, por natureza, é imperfeito, e que é justamente nessa imperfeição que se constrói a autenticidade e a continuidade das relações.














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