O Cântico do Cavaleiro do Fogo
- temporacomunicacao
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Coluna de Diego Franzen
Escrevi a história de Sir Ignácio no final dos anos 90. Achei-a hoje, por acaso, revendo meus e-mails antigos. Resolvi mudá-la, colocar mais elementos atuais, um pouco de minha vivência e como me sinto diante dos meus sonhos e ideais, inspirado nas grandes pessoas que me cercam e convivem comigo. E, hoje a apresento para você, amigo leitor. A partir de agora, lerás um texto escrito a duas mãos de um mesmo homem. A de um adolescente sonhador e a de um homem com mais de quarenta anos que ainda insiste em querer mudar o mundo.
...
Na fornalha da dor o chumbo da alma torna-se ouro. O fogo não destrói o homem honrado, apenas o revela. Eis sua canção. Chamavam-no Sir Ignácio, nome tomado de um vocábulo antigo que significa fogo. Era um nome simbólico, não de batismo, mas de renascimento. O nome verdadeiro perdera-se no pó dos anos, esquecido entre pergaminhos e epitáfios apagados.
Ignácio vinha do latim ignis, fogo, e nele ardia a centelha dos antigos alquimistas, aquele fogo secreto que transmuta o chumbo da dor em ouro espiritual. O fogo que devora o velho para dar forma ao novo. O fogo que ilumina mesmo quando o mundo insiste em ser treva.
E o fogo, de fato, ardia nele com uma intensidade quase divina.
Não era apenas chama, mas essência.
Sua alma era forjada na fornalha do ideal, e cada cicatriz que o tempo lhe impôs cintilava como o ouro purificado pela alquimia das provações.
Desde jovem, sonhava em ser mais do que um cavaleiro comum. Sonhava com a honra que se conquista não pela espada, mas pelo caráter.
Com o respeito que nasce do trabalho justo e do olhar firme.
Com o amor de uma dama cuja presença seria seu norte e seu repouso.
Desejava erguer-se na vida como um homem digno, reverenciado por sua coragem e lembrado por sua retidão. Esse era o seu Elixir, o ouro filosofal de seu espírito.
Sir Ignácio fora, em sua juventude, um homem de sonhos vastos e quimeras altas como torres. Tinha no coração a febre dos que acreditam e na alma o clarão dos que buscam a Pedra Filosofal de si mesmos. Não a pedra dos laboratórios, mas a do espírito, lapidada no cadinho das provações.
Sonhava com a glória, não a que se mede por moedas ou aclamações, mas a que se grava no silêncio das consciências nobres. Sonhava também com o amor, esse mistério que ele julgava mais difícil de conquistar do que qualquer castelo cercado.
Durante anos, galopou sob céus rubros e auroras de esperança. Lutou contra dragões de carne e de dúvida, enfrentou inimigos que usavam o rosto da decepção e da própria sorte.
Viu portas se fecharem, castelos desabarem, juramentos se romperem.
Mesmo assim, erguia-se, limpava o sangue do elmo e seguia em frente. Porque em seu peito ardia a convicção dos que foram iniciados na luz.
Foi em nome desses sonhos que empunhou a espada. Lutou por ideais, por honra e por um sentimento que não sabia nomear.
Havia uma dama, sempre há, e os olhos dela pareciam refletir não apenas a beleza, mas o sentido de todas as suas batalhas. Ele via nela o farol e o abismo, o prêmio e o sacrifício. Lutava por ela como quem luta pela própria alma, acreditando que o amor, o verdadeiro amor, é também uma forma de iniciação.
Por um instante, o destino pareceu sorrir. Sir Ignácio roçou o limiar da realização. Sentiu o sopro da eternidade tocar-lhe o rosto, como se o universo, em breve conivência, lhe concedesse o triunfo. Mas a Fortuna, volúvel e cruel, virou-lhe o rosto e o deixou diante do vazio.
E então, o cavaleiro caiu.
Cravou a espada na terra fria.
A lâmina penetrou o chão com um som seco, como se a própria esperança tivesse se ferido.
Chorou.
Chorou com a dor ancestral dos que amaram em vão, dos que lutaram até a exaustão e descobriram que o mundo raramente recompensa os puros. Suas lágrimas escorreram lentas, caindo sobre o punho da espada, e brilharam à luz do crepúsculo como rubis de resignação.
Sir Ignácio aprendera, entre espadas e silêncios, os segredos da antiga fraternidade. Sabia que o ferro não vale nada sem o fogo que o transforma, e que a dor é apenas o sopro do alquimista celeste lapidando o espírito bruto. Aprendeu com os Mestres da Pedra que há degraus invisíveis na senda dos homens, e que cada queda é uma lição disfarçada de ruína.
Nos templos que o mundo não vê, ele jurara proteger os fracos, honrar a palavra e ser fiel à Verdade.
Tinha no coração o triângulo do equilíbrio, na mente a régua da razão, e nas mãos o compasso que mede o espaço entre o sonho e o dever.
O mercúrio, o sal e o enxofre eram-lhe irmãos invisíveis. E o fogo que o nomeava era o mesmo que o purificava.
Mas o fogo, o ignis de seu nome, não se extinguiu. Permaneceu dentro dele, uma brasa adormecida no coração, esperando o sopro do recomeço.
E ele se levantou.
As pernas tremiam, o corpo sangrava, a fé cambaleava. Ainda assim, Sir Ignácio ergueu a cabeça e voltou ao campo.
Lutou de novo.
Caiu de novo.
Tornou a se erguer.
Cada derrota o moldava. Cada cicatriz o tornava mais íntegro, mais humano e, paradoxalmente, mais divino.
Já não lutava por glória, mas por dignidade.
Já não buscava o amor terreno, mas a chama eterna que habita o coração dos que não se rendem. O fogo em seu peito não ardia para destruir, mas para recordar-lhe que estava vivo.
Em suas longas vigílias, recordava os preceitos antigos que aprendera nos templos da cavalaria e nas escolas secretas do espírito.
Lembrava que o verdadeiro cavaleiro não ergue muros, mas pontes. Que o compasso e o esquadro não são apenas ferramentas, mas símbolos de equilíbrio e justiça.
Que a espada serve menos para ferir do que para proteger.
E que o ideal do cavaleiro é o mesmo do construtor: aperfeiçoar-se, pedra por pedra, até que o templo interior resplandeça em luz.
Os homens o chamavam de insensato.
Diziam que era tolice continuar, que a vida já lhe dera suficientes motivos para abandonar a lança e recolher-se à sombra.
Mas Sir Ignácio sorria com aquele cansaço sereno dos que conhecem o valor da insistência. Porque sabia que a desistência é a mais vil das rendições e que só o fogo que não se apaga purifica o aço que atravessa o tempo.
Às vezes, ao cair da noite, ele contemplava o horizonte e via, entre a névoa, uma luz longínqua. Talvez fosse um castelo, talvez apenas o reflexo de sua própria esperança.
Não importava. Montava seu cavalo, ajustava a espada e partia. O vento soprava-lhe o rosto, trazendo-lhe o perfume das planícies e o sussurro dos que vieram antes.
Ia porque o caminho o chamava.
Ia porque o sonho, mesmo ferido, ainda ardia.
Ia porque o fogo de seu nome não lhe permitia a quietude dos mortos-vivos.
E quando a lua refletia na lâmina de sua espada, ele via nela o reflexo de seus próprios ideais: amor filial, reverência sacra, cortesia, companheirismo, fidelidade, a pureza e a honra de seu reino. Virtudes antigas, mas eternas, que moldam o espírito dos verdadeiros cavaleiros.
Sir Ignácio seguiu então seu caminho, montado em silêncio, entre a névoa e o sol nascente.
O vento trazia consigo o murmúrio das antigas palavras de sabedoria, lembrando-lhe que um verdadeiro cavaleiro pode falhar em batalhas, mas nunca em princípios.
E assim seguiu Sir Ignácio, o homem que perdera tudo, menos a chama.
Seguiu para mais uma jornada, não para vencer, mas para continuar queimando.
Pois há corações que não foram feitos para o repouso, mas para o incêndio sagrado da busca.
E se um dia falhar como guerreiro, jamais falhará como cidadão, como líder ou como homem.
Porque aquele que traz o fogo no peito é destinado a iluminar o caminho dos outros.
Pois o fogo de Ignácio é o mesmo que arde no coração dos que buscam a luz.
E se lançarmos uma pedra na água, ela seguirá sendo pedra. Mas se a lançarmos no fogo, o fogo a transformará. Assim também é o homem de virtude e de honra: quando lançado à fornalha da vida e golpeado pelas marteladas do destino, torna-se, enfim, uma espada de luz . Afiada na dor, temperada no amor e erguida pela vontade divina.














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